Ler a narrativa do nascimento do Menino Jesus,
fechar os olhos e tentar visualizar os acontecimentos que nos são descritos
pelo evangelista Lucas, a cena que mais me toca o coração é imaginar a peregrinação
daquele sagrado casal com o recém-nascido nos braços e a forte afirmação feita
pelo sacro autor: “não havia lugar para eles na hospedaria”. Esta cena, típica
daqueles filmes dramáticos feitos no Brasil que recordam a saga de tantos
nordestinos, campesinos, homens e mulheres rurais que deixam suas casas para
tentar a sorte e a vida nas grandes cidades, nos enchem de comoção, fazem a voz
embargar e os olhos lacrimejarem.
Teologicamente, ao nos comunicar com minúcias de
detalhes as cenas que envolvem o nascimento de Jesus, Lucas tem a intenção de
nos fazer ver de modo prático e palpável aquilo que ordinariamente chamamos de
esvaziamento (kenose) ou humilhação do amor de Deus para com o gênero humano.
Ser rejeitado na hospedaria e ter que passar a noite num estábulo, aquecido
pelo “hálito” de animais campestres, ser saudado, cortejado pelos seres
celestiais, revela a verdade do amor que tudo suporta, até a rejeição. Não é
essa a verdade que nos é dita na Missa do Dia de Natal, quando então lemos João
1,11: “Veio para os seus e os seus não o quiseram”? Aquele que é de natureza
celestial (divina) é reconhecido e adorado pelos anjos, pelos seres inanimados
(estrela) e até pelos seres desprovidos de razão e afeto (animais), mas é
rejeitado pelos que são de antemão destinatários do amor de Deus (criatura
humana).
Celebrar o Natal do Filho de Deus, chegar ao fim
de mais um ano de nossas vidas, é também momento e oportunidade que o próprio
Senhor nos dá, de podermos estar colocando nossa vida na balança, equacionarmos
as inúmeras vezes que ao longo do ano findouro nós também fechamos a hospedaria
do nosso coração para os “outros cristos” que de nós queriam se aproximar?
Quantas vezes nosso coração se fechou ao perdão que nos foi solicitado? Quantas
ocasiões tivemos para nos alegrar com a alegria dos nossos irmãos e irmãs, e
por ciúme ou inveja preferimos ficar trancados em nós mesmos? Quantas vezes
minhas críticas secas, duras e cheias de amarguras só serviram para rechaçar
aquelas pessoas que comigo desejaram conviver e partilhar a vida? E as chances que
eu tive de poder ajudar, de me fazer positivamente presente na caminhada e na
existência de meus irmãos e irmãs, mas por capricho, orgulho ou má vontade
deixei de fazê-lo, preocupando-me apenas com minhas coisas, meus negócios e
minha vida?
Olhando pelo outro lado do prisma, a hospedaria
fechada para a Sagrada Família de Nazaré também nos recorda tristemente a nossa
própria sociedade humana, nossos guetos, clubes, comunidades, igrejas,
movimentos, pastorais e etc., que não se abrem ao diferente, ao novo, ao risco
de se aventurar em novas apostas, em acreditar em novas pessoas, lideranças,
afazeres, missões e trabalhos. Quanta coisa boa, quanta chance e oportunidade
de crescimento perdemos na nossa vida pessoal e comunitária simplesmente porque
escolhemos ficar fechados em nossos preconceitos, concepções e dogmas arcaicos.
Não abrimos a porta do nosso coração para o diálogo, a conversa sincera, a
partilha e a troca de experiências com aquele (a) que pensa de outra forma, que
pode ter uma outra maneira de encarar a mesma situação ou dificuldade que eu ou
meu grupo estamos enfrentando. E assim agindo, acabamos entrando num circulo
vicioso de ficarmos sempre repetindo velhas fórmulas, dando antigas respostas
para perguntas e questionamentos novos e como tal, obstaculizamos a própria
graça de Deus de estar agindo em nós e nos fazendo realmente pessoas novas para
um novo tempo que se renova a cada dia.
Finalizando, assim como no Natal as portas do céu
se abrem para nos enviar o grande e inaudito presente que é o
Menino-Deus-Conosco, esta celebração inaugure também em nós um novo coração. E oxalá
este possa ser um coração realmente aberto, escancarado e disponível ao
acolhimento de novas ideias, pessoas, projetos e realizações. Que o Natal, onde
Deus se propõe ir ao encontro do ser humano frágil, limitado e pecador, nos
ajude a compreender essa nossa vocação humana de abertura para o outro, nos dê
a graça de convertermo-nos realmente na imagem e semelhança do nosso Criador e
faça com que nós também sejamos homens e mulheres que sabem caminhar em direção
ao outro, respeitosos da limitação, da fraqueza, da diferença que naturalmente
ele carrega consigo. Que o Natal se converta em festa da alegria, da partilha,
do reconhecimento dos infindáveis dons e talentos que Deus derrama
continuamente sobre nós seus filhos e filhas.
Pároco